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GILKA MACHADO (1893-1980): A FALA DE EROS

 

por  SYLVIA P. PAIXÃO

 

 

Artigo extraído de

 

POESIA SEMPRE.  Revista da Biblioteca Nacional do RJ.   Ano 1 – Número 2 – Julho 1993.  Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional / Ministério da Cultura – Departamento Nacional do Livro.   ISSN 0104-0626m   Ex. bibl. Antonio Miranda

 

 

Eu sinto que nasci para o pecado,
se é pecado na Terra amar o Amor;
anseios me atravessam, lado a lado,
numa ternura que não posso expor.


Alguém seria capaz de identificar o autor dos versos acima? Infelizmente, creio que não. Mas quase todos notariam o uso indevido da palavra "autor: é evidente que esses são versos de mulher. Nenhum homem se sente culpado por ter ânsias de amar, e, na sociedade em que vivemos, este parece ser um pecado essencialmente feminino, herança legada por Eva, a primeira a desafiar as leis em nome do desejo.

Mas quem seria a autora de versos tão audaciosos, ousando se expor assim publicamente em nome do amor? Para surpresa de muitos, esta poetisa nasceu no Rio de Janeiro há cem anos e se chama Gilka Machado.

Casada com o poeta simbolista Rodolfo de Melo Machado, Gilka Machado viveu, no início do século, a dupla discriminação de ser mulher e poeta. Seus versos falam da condição feminina, expondo de forma ousada para a época o desejo da mulher em se libertar e ser dona do próprio corpo. Sua poesia, de inegável valor, transpira o erótico, revelando a mulher ardente e apaixonada, tendo sido, por isso, alvo de severas críticas.

Uma análise de sua obra* nos conduz a uma primeira constatação: os títulos dos seus livros revelam a proposta inovadora contida nos seus versos: Mulher Nua (1922), Meu Glorioso Pecado (1928), Sublimação (1938) são nomes sugestivos que se seguem aos dois primeiros. Cristais Partidos (1915) e Estado de Alma (1917), apontando para uma ruptura que irá se processar tanto na forma quanto na temática de sua poesia. A audácia implícita nos títulos de suas publicações revela o desejo de romper com a repressão imposta à mulher, dirigida principalmente ao corpo e ao prazer que dele emana.

A poética feminina gravita em torno do eixo amoroso, do qual fazem parte o erotismo, o espiritualismo e os sentimentos de fraternidade e maternidade. O eixo centralizador da poesia de Gilka Machado situa-se no erotismo, nessa fala da ausência do Outro: "somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que têm a nostalgia da continuidade perdida", diz Georges Bataille.

No começo do século XX, Gilka Machado busca, no discurso do erotismo, a construção de um ego dionisíaco, fazendo da poesia uma forma de conciliação entre a carne e o espírito. A construção de um ego dionisíaco visa à liberação dos instintos, em busca de uma vida plena e imediata. Essa experiência dionisíaca só pode ser alcançada através da dissolução do ego, que representa o princípio de realidade, as forças repressoras, a razão e o social. O primeiro passo no sentido de criar um ego dionisíaco consiste em romper com a repressão social, principalmente a que era imposta à mulher, o que se dá por meio de uma fala conscientizada, porém repleta de amargura. A poesia carrega, então, o estigma da mágoa e do ressentimento, correndo o risco de se tornar por demais panfletária: "Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada/para os gozos da vida, a liberdade e o amor;/ Ser mulher e oh! atroz, tantálica tristeza!/ ficar na vida qual uma águia inerte, presa/nos pesados grilhões dos preceitos sociais!"

Gilka Machado, entretanto, começa a reverter a estabilidade da literatura feminina feita até esse momento, introduzindo a fala do desejo na poesia. A proposta central de sua obra diz respeito à abolição das formas repressivas que tolhem a mulher na sua vivência. Para isso, dirige a sua poética no sentido de promover a ressurreição do corpo.

Desnudar-se, deixar o corpo manifestar-se na alegria e na dor, corpo dançarino que se revolve ao som da música dionisíaca. Amar o deus dançarino, retirando os obstáculos que impedem a visão do ser destinado ao isolamento: "Aqui me tens horrivelmente nua, /liberta e levitante/sem atitudes, sem mentiras, sem disfarces/ante o infinito da bondade tua."

Gilka Machado introduz, na sua poesia, o deleite sensual, fazendo do olfato, da audição e, sobretudo, do tato, a maneira de cindir o seu próprio Eu, identificando-se inteira no seu desejo do Outro, expresso pela natureza, pelos animais e pelo homem amado. "Sinto pelos ao vento... é a volúpia que passa,/flexuosa, a se roçar por sobre as coisas/corno uma gata errando em seu eterno cio."

No ano do seu centenário, é preciso lembrar esta que foi a precursora na luta pelos direitos da mulher em alcançar as representações do desejo na poesia. O erotismo implícito nos versos de Gilka Machado insere, no discurso poético feminino do século XX, uma nova proposta no sentido de compreender a mulher e o seu desejo. É na palavra e é no corpo que a poesia transita, promovendo a cisão do Eu com o Outro, revelando a multiplicidade do ser feminino, onde a ausência assume uma nova conotação. Não mais um corpo marcado pelo a-menos, mas sim um corpo que pode assinalar a fonte de um novo discurso.

 

* V. Gilka Machado — Poesias Completas, Léo Christiano Editorial Ltda, 1992, 448 p (N. do E.)


 

 

 
 
 
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